Joaquim Santana Foto: mediotejo.net

No dia 14 de janeiro de 2018, o Rancho Folclórico “Os Camponeses” de Riachos celebrou o seu sexagésimo aniversário. A soprar as velas esteve mais uma vez Joaquim Santana, 83 anos, figura icónica de Riachos – vila e freguesia no concelho de Torres Novas – líder associativo feito voz de um povo, alma de uma certa nostalgia ribatejana. No dia 7 de dezembro, não conseguiu negar-se a mais uma eleição para novo triénio na presidência. Depois de 60 anos à frente dos destinos do Rancho de Riachos, continuam a chamá-lo para a liderança, ainda que a saúde e a idade comecem lentamente a afastá-lo. Não irá aos EUA este ano, sonho antigo desta comunidade de artistas do folclore português. Mas com o Rancho correu o mundo, mundo esse que, em 1958, jamais pensaria que poderia atravessar.

Capítulo I

O Carnaval dos Lavradores

Riachos é terra de lavradores. A procissão com o Senhor Jesus dos Lavradores, uma grande imagem de Cristo crucificado encontrada algures no século XII, é parte integrada da “Bênção do Gado”, evento popular realizado nesta vila a cada quatro anos. As juntas de bois e o trabalho agrícola constituem a imagem de marca da localidade, com a sua longa tradição à terra exposta orgulhosamente nas suas tradições e, mais recentemente, em murais que o Núcleo de Artes de Riachos (NAR) executou um pouco por toda a vila.

Na antiga Casa do Povo de Riachos, a sede do Rancho, o busto algo austero de Joaquim Santana pintado no mural evidencia-se entre as figuras esguias dos dançarinos de jaqueta e barrete, lenço colorido no cabelo e saia rodada, que compõem uma narrativa com mais de meio século. Ao lado, discretamente, a tocar clarinete, está Martinho “Ginete”, essa outra figura riachense que deixou o mundo em outubro último.

Tal qual a imagem desenhada no muro da Casa do Povo, Joaquim Santana usa um chapéu preto de abas largas, típico do pequeno proprietário rural, o cingeleiro, de Riachos. Era a imagem tradicional do patrão de um rancho de trabalhadores agrícolas no início do último século, que Santana assumiu como sua e que se colou de forma indelével à sua personagem. Para quem chega e o cumprimenta na tarde em que nos encontramos em Riachos, Santana é o “chefe”. Nunca deixou de ser o “chefe”, mesmo para aqueles que se tornaram mais próximos.

“Foi das coisas que mais me custou foi fazer aquilo. Custar não em dinheiro, mas em esforço de cabeça. Íamos falar com as raparigas, mas elas alertavam para os pais. Em 1957 não lhe passa pela cabeça o que era Riachos. Uma terra rural, a maior parte da gente trabalhava no campo”.

Joaquim Lopes Santana, 83 anos, nasceu a 27 de setembro de 1934, no Casal de Santanas, em Riachos. Quinto filho de Feliciano Simões Santana, um cingeleiro, e de Maria Lopes, que com 12 anos deixou a escola e se dedicou ao trabalho na terra, até que uma oportunidade o encaminhou para os serviços da Câmara Municipal de Torres Novas, onde chegaria a Chefe dos Serviços de Água e Saneamento. Um percurso inesperado ao qual, como todas as oportunidades que teve na vida, se agarrou de forma apaixonada e autodidata, construindo um currículo invejável quer no folclore quer nos serviços públicos.

Mas em 1957, quando deu os primeiros passos com Martinho “Ginete” num grupo de Carnaval que daria origem ao Rancho, Joaquim Santana era apenas lavrador. “Nem imagina o que era Riachos” nos anos 50, salienta por diversas vezes ao longo da conversa.

“Comecei talvez com 20 anos no associativismo. Comecei primeiro na direção do Atlético Clube Riachense. Como vogal. Em finais de 1957 começámos a pensar em fazer uma brincadeira de Carnaval no Carnaval de 1958. Porquê? Havia em Riachos um homem, trabalhador rural, mas com umas faculdades excepcionais. Ele todos os anos fazia…chamavam-lhe “a marcha de Carnaval”, só com homens, e metade vestiam-se de mulher. Era Carnaval mesmo. Muito bem organizado. Ele escreveu uma peça à maneira dele, o enterro do bacalhau, fazia espetáculos na Páscoa. Era um homem fantástico. Em 1957 acho que os homens zangaram-se e ele disse «nunca mais faço nada!». E no final desse eu e aquele senhor do clarinete, o Martinho “Ginete”, fomos ter com ele”.

Na negociação para fazer esta brincadeira de Carnaval, admite Joaquim Santana, contou por certo a reputação da família, cujo pai chegara a ser presidente de junta. O antigo responsável pelo desfile de homens não estava interessado em repetir a iniciativa carnavalesca, pelo que Joaquim e Martinho decidiram criar o seu próprio espetáculo, mas desta feita com jovens raparigas. O empreendimento foi difícil de organizar, recorda, passando inicialmente por andar de taberna em taberna a tentar convencer os pais das jovens a autorizar a brincadeira.

“O meu pai viu e disse-me: «ó joaquim, não deixes acabar isto». Tem sido isso um bocado também porque tenho aguentado. 60 anos é tempo demais para andar num grupo, com todas as responsabilidades”.

“Foi das coisas que mais me custou foi fazer aquilo. Custar não em dinheiro, mas em esforço de cabeça. Íamos falar com as raparigas, mas elas alertavam para os pais. Em 1957 não lhe passa pela cabeça o que era Riachos. Uma terra rural, a maior parte da gente trabalhava no campo. Eu próprio trabalhava no campo naquela altura, até aos 30 anos. Os pais…a maior parte não sabiam ler nem escrever. Onde é que a gente ia ter com os pais? Às tabernas. Eles com um copo de meio litro à frente… (…) Aquilo foi difícil”.

Não obstante, a brincadeira foi em frente, assente na boa reputação de Santana e no apadrinhamento de alguns notáveis locais, mau grado os preocupações parentais devido aos ensaios noturnos. Na altura, salienta Joaquim Santana, as danças nada tinham a ver com folclore. Os trajes eram fantasias e a conceção do espetáculo, bem aceite pela comunidade, foi de Joaquim e Martinho, que há época tinham pouca noção do que era de facto folclore.

“Começaram a dizer que era pena que aquilo acabasse. E depois houve uma coisa que eu nunca me esqueci. No dia de Carnaval de 1958 fomos bailar à minha porta. A minha mãe já estava de certa maneira doente, já não saia. O meu pai viu e disse-me: «ó joaquim, não deixes acabar isto». Tem sido isso um bocado também porque tenho aguentado. 60 anos é tempo demais para andar num grupo, com todas as responsabilidades do grupo”.

Joaquim Santana dançou pouco. Alertado que o que fizera no Carnaval de 1958 não era de facto folclore, iniciou o seu estudo sobre as tradições e preparou o rancho o melhor que conseguiu. Assumiu assim, no Rancho e a nível pessoal, o papel do cingeleiro, o pequeno proprietário, vestido de preto e com um chapéu de abas largas (que mandaria fazer de propósito ao estilo de 1900) que coordena os trabalhadores rurais na sua atividade agrícola. Em breve, o Rancho de Riachos dançava pela Europa.

Capítulo II

A conquista do mundo

Quando Joaquim Santana fundou o Rancho de Riachos em 1958, não imaginava os caminhos pelos quais este o iria levar. O grupo manteve-se independente durante cinco anos, até se juntar à Casa do Povo de Riachos, passando a usufruir do espaço. Apenas em 1991, com o fim destas instituições tradicionais do Estado Novo, o Rancho se transformou numa associação. Atualmente conta com cerca de 65 elementos, sendo que o mais jovem tem cinco anos e o mais velho é o próprio Santana. Toda a história da coletividade está arquivada em inúmeros dossiers guardados no escritório do Rancho, um por cada ano de funcionamento deste, com nomes de dançarinos e todos eventos e viagens que o grupo realizou.

Há uma piada interna que Joaquim Santana não se inibe em contar. Quando casou, a esposa ter-lhe-á pedido que abandonasse o Rancho. Santana terá respondido: “Saiu sim senhor. Quando for a Nova Iorque ou a Moscovo, saio do Rancho”. Pois bem, o Rancho vai finalmente aos EUA, Nova Jérsia, em 2018. Devido à saúde, Joaquim Santana não poderá ir. “Tenho um desgosto enorme de não ir”, lamenta.

Foi um longo percurso. “Daqui de Riachos, daquela sala do meio, eu fazia tudo”, recorda Joaquim Santana. “Eu só sabia português e mal, só tenho a quarta classe, e dali dirigia o grupo todo para Espanha, para a França, para a Alemanha. Comigo à frente fomos 57 vezes ao estrangeiro”, passando também por locais como Macau, Hong Kong e Cabo Verde. Nesses locais conheceu outros diretores e organizou novas viagens. Misturava-se italiano, espanhol, e o pessoal lá se entendia.

O trabalho de Joaquim Santana no Rancho foi o resultado de um intenso estudo.

“As recolhas foram quase todas feitas por mim e por aquele senhor do clarinete, com a ajuda às vezes de uns e de doutros. Mas eu agarrei-me de tal maneira a saber como é que eram as características das pessoas de Riachos… Eu não sabia o que queria dizer a palavra folclore. Digo-lhe abertamente, não tenho vergonha nenhuma. Em 1958, quando nós começámos, falar de folclore era a palavra folclore. O que é que ela quer dizer? Não sabia. Em conversas com pessoas a seguir ao Carnaval disseram-me que aquilo não era nada de folclore”.

Ainda veio um professor ensinar o grupo de Riachos, mas rapidamente partiu. Ficou Joaquim Santana como instrutor, aprendendo pelos seus meios aquilo que ninguém lhe ensinara. Tornou-se um autodidata apaixonado pelas tradições, que incorporou no seu perfil e o transformaram na figura icónica que hoje representa, sempre de chapéu de abas largas. “Agarro-me a isto de tal maneira… O Riachos para mim é como as palmas das minhas mãos”, admite.

Do rapaz que não fez mais que a 4ª classe e se tornou chefe de divisão nos serviços municipais, Joaquim Santana escreveu ainda, ao longo da sua vida, três livros sobre Riachos. A sua mais recente fase de aprendizagem passou pela transição, já octogenário, para as redes sociais, onde entretanto publicou, via facebook, cerca de 75 textos sobre a história e as tradições de Riachos. É um processo que passa pela redação à mão e só depois é passado para computador, em textos que incluem também variadas reflexões.

“Agarro-me a isto de tal maneira… O Riachos para mim é como as palmas das minhas mãos”

O Rancho entretanto floresceu, com picos de maior e menor afluência e a abertura de uma escola para ensinar as novas gerações. “Temos muita gente”, admite Joaquim Santana, “se calhar gente a mais”, o que por vezes impossibilita que a equipa toda faça determinadas viagens, como a próxima aos EUA. “Chegámos a ter 20 pares a dançar”.

Joaquim Santana não sabe explicar porque o Rancho de Riachos continua a cativar tanta gente. “Começámos com cento e tal pessoas, agora temos cerca de 30 miúdos na escola. Depois nem todos ficam. Uns depois são chamados mais vezes, outros ficam pelo caminho. Com o traje começam” a ganhar mais  confiança.

“O Rancho é a minha cara”, confessa. A “disciplina” foi o valor que sempre procurou implementar. “Nunca obriguei ninguém. Mas foi a disciplina, foi o trabalho, a maneira de gostar. Nós tivemos um período, nos anos 70, anos 80 e parte de 90, que chegávamos ir três vezes ao estrangeiro num ano. E as pessoas entusiasmavam-se. Era uma sorte, numa terra destas, uma aldeia, que nos anos 50 e 60 a grande maioria das pessoas de Riachos trabalhavam no campo, rurais autênticos, a maioria não sabia ler nem escrever… A postura do Rancho durante todos esses anos, a postura das pessoas… Nós nunca tivemos um caso de um rapaz e de uma rapariga se misturarem e darem barraca como havia em tantos casos. Tivemos essa sorte, que eu digo que foi sorte. Tivemos essa postura”.

Se no início os dançarinos eram todos trabalhadores do campo, passados 10 anos surgiram as primeiras raparigas estudantes. “Esta união, esta abertura, foi o que fez que o Rancho de Riachos” continuasse. “Os pais confiaram sempre…”.

Tal também foi possível porque as viagens, à época, eram pagas e fora do país o Rancho procurava participar em outros espetáculos que permitissem ajudar a pagar as despesas. Joaquim Santana recorda que muitas vezes estas viagens davam lucro. “Hoje já não”, lamenta. Apesar dos muitos convites para festivais internacionais, tem quase sempre que sair grande parte do investimento do bolso da instituição.

Capítulo III

Há uma década a preparar a partida

Com 83 anos, Joaquim Santana admite que há cerca de uma década que prepara a saída, sobretudo devido aos problemas de saúde. O lugar já “está assegurado”, garante, mas na última eleição, a 7 de dezembro, tornaram a pedir-lhe que encabeçasse a lista, única, à presidência. Mesmo não podendo acompanhar as viagens e com um papel cada vez menos ativo e mais simbólico na equipa, Joaquim Santana aceitou. Continua afinal a ser o “chefe”, até para aqueles que já abandonaram o Rancho.

Este ano, a junta de Riachos deu o seu nome a uma rua da vila. O dirigente admite que o momento o emocionou, assim como quando o NAR desenhou a sua fotografia no mural junto à Casa do Povo. Apesar de algumas reticências iniciais com a homenagem, os seus medos revalar-se-iam infundados. “Foi uma emoção tremenda o dia da inauguração. Muita gente. Os partidos todos do concelho. (…) Foi extraordinário”, admite.

“Em 1957 ou 58 quando começámos eu não sabia o que era a palavra folclore. Foi preciso ter muita ajuda. Eu não fiz sozinho, ninguém faz nada sozinho.”

Quando perguntamos como gostaria de ser lembrado quando partisse, reconhece: “Nunca pensei nisso”. Ao longo de 60 anos de trabalho, constata que tudo o que se fez foi de facto “extraordinário”. Um percurso inesperado para um conjunto de pessoas que, provavelmente, não pensariam poder ter certo tipo de oportunidades na vida.

“Uma pessoa com a quarta-classe, que pega num grupo, numa aldeia com umas características rurais como o Riachos era, parte para França, com os pais a choras e as meninas, que a maior parte delas nunca tinha saído de Riachos. E depois faz um percurso por toda a Europa, salta para Macau e Hong Kong, percorre o país todo. É de pensar. Em 1957 ou 58 quando começámos eu não sabia o que era a palavra folclore. Foi preciso ter muita ajuda. Eu não fiz sozinho, ninguém faz nada sozinho. Tive pessoas espetaculares a trabalhar comigo. Eu era muito novo, era solteiro. Era complicado. Mas a confiança que a minha família me deu sempre…tive essa sorte. Foram anos excecionais”.

Capítulo IV

O 60º Aniversário

No âmbito das celebrações dos 60 anos do Rancho Folclórico “Os Camponeses” de Riachos, a instituição preparou uma programação variada.

Dia 6 de janeiro foi lançado um livro de fotografias sobre a vida quotidiana de Riachos, com imagens do Rancho, numa edição comemorativa. Seguiu-se a conferência “Camponeses de Riachos ao longo dos seus 60 anos”, com os oradores Daniel Café, presidente da Federação de Folclore Português, Ludgero Mendes, vice-presidente da Federação de Folclore Português, e José Joaquim Mendes, delegado do conselho técnico do Alto Ribatejo.

Dia 13 de janeiro decorreu um jantar comemorativo. O aniversário celebrou-se no domingo, dia 14, com uma missa.

Rancho Folclórico os Camponeses de Riachos Foto: Rancho Folclórico os Camponeses de Riachos

A continuar em Riachos…

Cláudia Gameiro, 32 anos, há nove a tentar entender o mundo com o olhar de jornalista. Navegando entre dois distritos, sempre com Fátima no horizonte, à descoberta de novos lugares. Não lhe peçam que fale, desenrasca-se melhor na escrita

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