Conde Falcão, o Coronel Fotógrafo. Foto: mediotejo.net

Na década de 40 do século XIX surgia em Portugal o primeiro daguerreótipo e o Panorama – Jornal Literário e Instrutivo, da Sociedade Propagadora dos Conhecimentos Úteis, publicava a primeira imagem fotográfica da imprensa nacional.

Na década de 40 do século XX nascia no Sardoal António Conde Falcão, um verdadeiro “amador” do mundo que descobriu aos nove anos e aprofundou durante a carreira militar, conquistando a patente de “Coronel Fotógrafo”.

E porque a fotografia tem a capacidade extraordinária de parar o tempo, selecionámos momentos captados por ele para contar sete pormenores dos 77 anos de vida.

Fruto de um casamento em segredo

A fotografia “Amor Branco” integra a exposição dedicada ao Amor, patente no local da entrevista. Foto: Coronel Fotógrafo

A vida de Conde Falcão começa com o tema que inspirou a exposição patente no restaurante “Quatro Talhas”, onde decorreu a entrevista: o Amor. Não o(s) seu(s), mas aquele que o trouxe ao mundo a 13 de junho de 1940, no dia de Santo António que além dos casamentos também protege os pobres.

Foi nessa condição que começou o seu pai, filho de gente humilde que trabalhava a terra e viu o futuro mudar quando a professora reconheceu as suas capacidades e disse ao avô: “O Manel tem que sair daqui”.

O “Manel” saiu aos 13 anos para Lisboa, onde trabalhou como aprendiz de empregado de balcão numa casa comercial até ao regresso ao Sardoal para integrar o pessoal da Casa Tramela. Foi ali que conheceu Maria Eugénia, filha de uma figura conceituada do concelho que desempenhava a função (oficiosa) de notário e não reconhecia no jovem marçano o genro ideal. Moço pobre. Moça Rica. Amor sem valor pela imensa pureza para uns e pela parca valia financeira para outros.

Se Manuel Nascimento Falcão conhecia a capital, Conde Leitão viajava até aos Açores e à Madeira num cruzeiro que não seria mais do que “um barquito ao pé dos paquetes de hoje”, diz Conde Falcão.

Se o primeiro partilhava com os clientes as novidades dos produtos, o segundo partilhava com os amigos as novidades do mundo que lhe chegavam através dos jornais, privilégio que poucos tinham na terra, mesmo que tivessem uma semana de atraso.

A atenção do avô à informação que vinha de fora era superior à que ia passando nos corredores da sua casa na Venda, a única com primeiro andar, até ao dia em que Maria Eugénia tardou em regressar da missa em Santa Clara, Alcaravela. A jovem não falhara com Deus e estivera presente na igreja não numa, mas em duas cerimónias religiosas, a Eucaristia e o casamento em segredo com Manuel, organizado pelos padrinhos.

Maria Eugénia só regressaria à casa da Venda já com António Conde Falcão nos braços, quando o pai acedeu a conhecer o neto por sentir que a doença o aproximava do fim da vida. Com ela veio o esposo, o “Manel”, cuja ida foi negociada e que acabou por levar o sogro e a sogra, a avó de que o fotógrafo se lembra de ver sempre de lenço na cabeça e a rezar a Santa Bárbara nos dias de trovoada. Foi na casa alugada na Rua do Vale que Conde Leitão faleceu nos braços do genro, chamando-lhe “filho”.

Tempos de menino criado por velhotes

Criança timorense no Jamor, refugiada em Portugal. Foto: Coronel Fotógrafo

Conde Falcão tinha pouco mais de um ano quando o avô materno faleceu. Na casa ficaram ele, os pais e a avó, que o tratavam carinhosamente por “Tonito”. Os quatro juntos na habitação que recorda “muito comprida”, onde tinha o seu canto num quarto “meio interior” e os banhos eram tomados nos “baldes grandes” com a água aquecida ao lume do fogão a lenha.

A vida era “muito austera, mas muito boa” pela “afeição” que tinha à família, mesmo com as ausências do pai que muitas vezes “aparecia já tarde” porque “tinha muito que fazer”. O isolamento do interior fazia com que o único amigo fosse o Pequito Caldeira, da casa em frente, e o resto da companhia era assegurada “por velhotes”.

A avó no cimo da lista seguida pelas Meninas Tavares, as vizinhas solteiras que moravam na casa contígua à da família e cujo sótão era um verdadeiro “bric-à-brac”.

Uma vez transposta a porta com o número seguinte na Rua do Vale, Conde Falcão entrava num mundo desconhecido que explorava à noite quando lá dormia ou durante o dia no último andar onde desenvolveu o seu “imaginário”. Nem sempre o fazia sozinho pois de vez em quando aparecia o sobrinho das senhoras meninas, o “engenheiro Tavares”, que mereceu honras da terra com a banda local a tocar no dia em que regressou formado.

Os tios que receberam a irmã mais velha a tempo inteiro devido à difícil situação financeira dos pais também estavam por perto quando os ia visitar.

Uma das memórias mais marcantes é a da noite em que as ondas curtas da “telefonia” se esticaram até Londres e a voz de Fernando Pessa saiu dos microfones da BBC anunciar o Armistício de 8 de Maio de 1945, Dia da Vitória na Europa (V-E Day).

A derrota da Alemanha Nazi a favor dos Aliados na Segunda Guerra Mundial deixou o tio, um “liberal”, tão “feliz” que se esqueceu do pequeno “Tonito” no colo e se levantou para comemorar.

A queda podia ter sido apenas mais uma que prova “ao menino e ao borracho mete Deus a mão por baixo”, mas não foi o caso e em baixo não o esperava a mão de Deus, mas a pequena braseira que se acendia em noites mais frescas, mesmo quando era verão.

Os primeiros banhos fotográficos

Onda captada na Ericeira. Foto: Coronel Fotógrafo

As consequências do contacto com as brasas na casa dos tios ainda hoje são visíveis nos dedos que transformaram Conde Falcão no “Coronel Fotógrafo”. Um dano colateral não contabilizado do conflito bélico que provocou efeitos nefastos nos países envolvidos, nomeadamente na terra natal de Hitler. Da Áustria partiram milhares de crianças que foram acolhidas por famílias estrangeiras e entre elas estava Roland Hummel, recebido pelo pároco Eduardo Dias Afonso.

O “Tonito” passou a ser presença regular na casa do clérigo e as diferenças culturais com o menino de dez anos, “magrinho” e “muito nervoso”, foram suplantadas pela persistência de Roland que “tudo o que metia na cabeça que queria fazer, fazia”. Um dos desafios levou-os à “farmácia do Dionísio” para que o boticário lhes desvendasse os segredos químicos da fotografia.

Uma vez conhecido o processo dos banhos regulador, de paragem e fixador, adquiriram os produtos e começaram a congelar pedaços de tempo com a antiga Agfa do pai. A máquina de fole no formato 6×9 até “já fazia cópia direta”, destaca, e o “bichinho” surgiu ao mesmo tempo que se revelava o “mistério” do surgimento da imagem no meio do escuro.

A experiência foi marcante, mas não se tornou quotidiana nos anos que se seguiram. Tal como a presença de Roland, com quem perdeu contacto e viria a reencontrar quase 50 anos depois em Viena. Não foi fácil e a vontade de rever o seu companheiro de fotografia levou-o a entrar numa aventura que envolveu pesquisas em listas telefónicas, desencontros e um abraço apertado.

A caminho do mundo

Estátua de Santo António. Foto: Coronel Fotógrafo

Os tempos de infância no Sardoal depressa passaram. Conde Falcão estudou na terra natal até ao antigo quinto ano, iniciando o percurso escolar nas instalações provisórias do antigo Colégio Rainha Santa Isabel, na Rua do Mestre do Sardoal.

Aos nove tinha-se mudado para a Casa Facão, edifício que ladeava a Casa Tramela da qual o pai se tinha tornado sócio e que passou a albergar a família e o estabelecimento local que fechou portas em dezembro de 2015, depois de 66 anos a dar resposta às necessidades dos clientes.

Com a situação financeira assegurada, o pai de Conde Falcão decidiu que estava na hora assegurar o futuro do filho através dos estudos. O liceu mais próximo era em Santarém, com vagas esgotadas, e a vontade de encontrar “um colégio conceituado” foi conjugada com a proximidade da casa dos primos, levando o jovem até ao prestigiado Liceu Passos Manuel.

O prestígio almejado para o “Tonito” parecia estar mais do que assegurado pela instituição oficial inaugurada em 1911.

Em Lisboa ganhou “noção do mundo”. Até lá, diz, a única consciência que tinha era o gosto que se tinha “por esta pessoa, pelo que se tem”, em suma, pelo que existia até onde a vista e a mão alcançavam. Estudou na capital até se deparar com um professor que só dava “uma positiva por período” e propunha explicações de um amigo para compensar a suposta falta de capacidade dos alunos.

Conde Falcão decidiu que o esforço financeiro do pai não devia ser aplicado em “explicações corruptas” e Lisboa deu lugar a Cernache do Bonjardim, onde estudou no antigo Colégio Vaz Serra.

Foi perto da primeira pedra do externato, lançada pelo Comendador Libânio Vaz Serra em 1950, que se destacou como “aluno do quadro de honra”. Por lá também teve um “amor platónico” e descobriu o gosto pela carreira profissional que optou seguir depois de ter contacto com as “tradições militares”.

Desses tempos recorda que “até certo ponto, foi Cernache que me levou para a vida militar. Tínhamos farda de gala, formaturas…”.

África, o cenário que mexeu com dois amores

O banho que apanhou de surpresa em Cabo Verde. Foto: Coronel Fotógrafo

Se a ligação à imagem, um dos seus amores, teve os primórdios no sótão da casa de um padre sardoalense, foi o cenário africano que lhe vincou o gosto, na década de 70, quando a vida militar o levou até Moçambique numa das três comissões que fez no Ultramar.

Acabou por ser o mesmo cenário que antecipou o casamento com outro amor pois a possibilidade de ser destacado para as províncias ultramarinas fez pedir ao futuro sogro, homem com emprego importante na capital, para casar.

A sortuda era Lurdes, por quem se perdera de amores no caminho que vai dar à Igreja Matriz do Sardoal, dedicada a S. Tiago e S. Mateus. A rapariga vinha passar férias ao Sardoal e ficava na casa da tia, onde gostava de estar à janela “a ver as pessoas passar”.

Um dos transeuntes foi ele e a partir do momento em que ali a viu tornou a rua num ponto obrigatório de passagem, de preferência com a “motoreta” que, apesar de “fraquita”, acelerava bem e criava a imagem de “herói” em conjunto com a indumentária preta.

A troca de olhares também se dava nas festas locais, como aquela onde dançaram pela primeira vez sob outro olhar menos toldado pelo sentimento, o da prima dela. Na Praça da República, em pleno centro da vila de Sardoal, era montado um imenso estrado e as raparigas serviam na “casa de chá”.

Surgiu então o namoro que os sogros aceitaram, em parte, motivados pela carreira do jovem Conde Falcão, iniciada na Academia Militar em 1959.

A patente de “Coronel Fotógrafo”

A força dos blindados em contraste com a fragilidade de uma alferes. Foto: Coronel Fotógrafo

A partida para o Ultramar foi feita como capitão, tal como previa, o que deu três anos de vida familiar ao casal que jurou amor eterno na Igreja de S. João de Brito (Lisboa), em 1963, ele com 23 e ela com 18. Quando regressou a Portugal depois da segunda comissão militar em Moçambique, no início da década de 70, o “hobbie” da fotografia tinha-se tornado sério, com uma primeira incursão pela fotografia de reportagem e a estreia no laboratório fotográfico analógico com o alferes Luís Cangueiro.

Foi no espaço montado na companhia que aprendeu a fazer o efeito “Sabatier” (solarização) e a desenvolver a técnica que aprendeu a dominar sem recorrer a formação profissional. Por terras lusas, a câmara escura surgia onde as condições o permitiam e a roupa da família na marquise de Linda-a-Velha era substituída por tanques de revelação, pinças, espirais, funis, químicos e outros utensílios.

Era um dos cerca de oito amadores que faziam fotografia, literalmente, “em casa” e a sua arte saiu para a rua puxada pelo reconhecimento do fotógrafo Carlos Marques, figura proeminente na área, numa das revistas de fotografia de que foi diretor. Só regressou ao interior das paredes nas páginas de revistas e livros, nos espaços onde se realizaram as mais de 80 exposições individuais e coletivas referenciadas nos cerca de 400 prémios e menções honrosas recebidos em Portugal e no estrangeiro.

Esperas (e gentes) que compensam

Foto tirada na China e integrada no tema “sono”. Foto: Coronel Fotógrafo

A fotografia digital chegou na “altura certa”. Deu-lhe tempo livre e livrou-o dos chamados “puristas” que “não sabiam fazer laboratório” e criticavam os efeitos aplicados. Nem todos têm o dom e muitas vezes ouve-se a expressão de que o problema não está na máquina, mas na pessoa atrás dela. Conde Falcão concorda e destaca que é tudo uma questão de “olho” e de capacidade de previsão, acrescentando que “como não sou pintor, tenho que imaginar o que vai acontecer”.

A maioria dos milésimos de segundo captados nas suas fotos resultaram de horas de espera, outros de encontros inesperados. Seja “fotografia de espera” ou “inopinada por sorte”, a quantidade continua sem substituir a qualidade e torna-se fundamental definir o primeiro e o segundo plano, ensina. A experiência com lente grande angular, à qual recorre com frequência, ajuda, sobretudo nos temas de eleição e marcam os trabalhos deste “fotógrafo de rua” assumido.

O enquadramento também importa e os pontos fortes e fracos são desenhados na folha de papel da mesa do restaurante durante a entrevista. Passando da técnica à emoção, arriscamos dizer que são os temas que unem quem fotografa e quem vê o resultado final.

No caso de Conde Falcão, o tema que destaca é o “fator humano”, preferindo as “gentes do mundo” às paisagens com destaque para as crianças e os idoso por “serem mais genuínos”.

Conde Falcão durante a entrevista. Foto: mediotejo.net

Estas são apenas algumas das revelações do “Coronel Fotógrafo” que entoou o grito da Arma de Cavalaria do Exército Português “Ao galope… À carga!” até à publicação da Lei dos Coronéis em 1992 e, desde então, se dedica em exclusivo a carregar no botão da máquina fotográfica e a (re)construir cada espaço da Fonte Nova, o seu refúgio no Sardoal.

Podíamos ter ficado pela interpretação da biografia “Flashes da Minha Vida” que lançou em 2016 ou exemplares dos milhares de fotografias que tirou ao longo da vida. Decidimos fazer com que cada imagem não contasse apenas uma história, mas duas, a do momento registado e a de quem a captou.

Nasceu em Vila Nova da Barquinha, fez os primeiros trabalhos jornalísticos antes de poder votar e nunca perdeu o gosto de escrever sobre a atualidade. Regressou ao Médio Tejo após uma década de vida em Lisboa. Gosta de ler, de conversas estimulantes (daquelas que duram noite dentro), de saborear paisagens e silêncios e do sorriso da filha quando acorda. Não gosta de palavras ocas, saltos altos e atestados de burrice.

Entre na conversa

1 Comentário

  1. Tive a honra de pertencer a polícia do exército em 1978/79 o meu comandante de instrução foi o ainda major Conde Falcão onde quando era visto algumas vezes com a sua máquina fotográfica em punho.Em 1979 já em Lisboa no regimento lanceiros foi o comandante do grupo PE .
    Só o tornei a ver já nos ano2012 (?) A fotografar o aniversário do regimento de lanceiros ainda na calça da ajuda em Lisboa

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *