Luís Alves, presidente da Junta do Rossio. Créditos: mediotejo.net

*Originalmente publicado em fevereiro de 2016 e republicado em janeiro de 2019, a propósito da recuperação da profissão de guarda-rios pelo governo, tendo o primeiro concurso para a contratação de vigilantes da natureza da bacia hidrográfica do rio Tejo sido publicado esta semana.

Uns tratam-no por Presidente, outros por Luís Alves, mas entre muitos da sua geração ainda é mais conhecido como o guarda-rios, profissão já extinta que desempenhou durante cerca de 30 anos e que tinha como objetivo guardar e proteger os cursos de água que, no seu tempo, estavam sempre limpos e que hoje estão em “estado miserável”.

Atualmente é o presidente da União de Freguesias de S. Miguel do Rio do Rio Torto e Rossio ao Sul do Tejo, no concelho de Abrantes, mas durante 30 anos Luís Alves foi guarda-rios.

Mas o que é um guarda-rios? Para além de ser o nome de uma ave, guarda-rios foi uma profissão que existiu em Portugal entre o séc. XVIII e o séc. XX, estava afeta aos Serviços de Hidráulica do Estado, acabou por ser extinta e deu lugar à figura do vigilante na natureza. Ao guarda-rios cabia a função de guarda e proteção dos cursos de água, passando pela fiscalização da extração clandestina das areias dos rios, da pesca clandestina, corte de árvores, situações de despejos/poluição, entre outras.

“Entrei para a Hidráulica em 1980, e depois isto mudou de nomes, até mandámos um postal ao Presidente da República com um poema a pedir para não acabar com a profissão e para não mudar o nome, mas isso acabou por acontecer”, recorda Luís Alves. Quando se reformou, já não era guarda-rios, mas sim vigilante da natureza.

Voltando atrás no tempo, Luís Alves recorda ao mediotejo.net como era o seu dia-a-dia de guarda-rios: “A minha área de intervenção eram os 12 concelhos do norte do Distrito de Santarém, estava sediado na Mata dos Sete Montes, em Tomar, e percorria esses concelhos, não todos os dias porque não havia possibilidade para isso, mas acompanhámos sempre as pessoas, empresas e todas as situações que aconteciam”.

E exemplifica algumas das atuações como guarda-rios: “uma pessoa que tinha um rombo e a água estava a levar a horta toda que era essencial para sobreviver; ou quando alguém que tinha uma suinicultura e não sabia o que fazer porque tinham morrido os porcos e tem de se encontrar uma solução; ou quando abandonavam uma carrada de lixo em área protegida e tínhamos de ver e saber de onde vinha e colocar o individuo perante o facto e convidá-lo a resolver a situação antes de atuar de outra forma”.

Situações de fiscalização que por vezes poderiam trazer dissabores na sua atuação, caso se encontrassem com pessoas mais agressivas. “Comecei a desempenhar a função de guarda-rios e cheguei à conclusão fácil de que me pagavam para eu fazer aquilo que mais gostava: que era fazer o meu trabalho, relacionar-me com as pessoas, ajudar as pessoas a resolverem os seus problemas, ser muitas vezes árbitro entre os conflitos, muitas vezes ter de dizer não e, felizmente, sempre compreenderam a minha posição e tive uma relação fácil com todas as pessoas”.

Das suas lembranças, Luís Alves não tem memória de situações mais complicadas, antes pelo contrário, relata episódios em que “até mesmo nos conflitos de vizinhança nós atuávamos e funcionávamos como fiel da balança, mostrando o que era correto fazer e que eles tinham de se dar bem”.

“Todas estas situações passavam pela nossa função, que era sobretudo amiga, nós tínhamos de agir preventivamente e nunca repressivamente. No meu tempo, o guarda-rios que levantava muitos autos de notícia era visto como um mau funcionário. O bom funcionário era aquele que agia preventivamente e não permitia que ocorressem infrações ou agia imediatamente após a infração e era possível remediar”, realça o antigo guarda-rios.

abrantes_luis alves3 (Foto: mediotejo.net)
Luís Alves, atual presidente da União de Freguesias do Rossio ao Sul do Tejo e S. Miguel do Rio Torto, lamenta os “estado miserável” em que se encontram os rios portugueses

O respeito, a humildade e a amizade eram valores que existiam na altura em que era guarda-rios, recorda Luís Alves: “É uma diferença abismal entre os dias de hoje e antigamente, eu vivia com as pessoas e as pessoas comigo, éramos peças do mesmo tabuleiro, não havia diferenças, não era visto como um intruso, mesmo quando havia aquelas questões de vizinhança, era visto como um amigo que estava ali para ajudar e não como um intruso. Normalmente as pessoas têm soluções que nós podemos melhorar e o facto de as incluirmos nessas soluções criamos uma relação de proximidade em que a pessoa sente que é parte da solução e tenta preservar as coisas”.

A reviravolta

Em meados dos anos 90, dá-se uma reviravolta na maneira de olhar para os serviços prestados pelos guarda-rios e entra-se numa fase de alguma “fricção”, recorda Luís Alves.

“As coisas pioraram quando os tecnocratas começaram a invadir os ministérios e houve muita falta de sensibilidade do que eram os serviços, um certo tempo, nas reuniões que tínhamos, corria a ideia de que os serviços não apresentavam resultados, lucros e que o serviço tinha de acabar”.

“Começou a haver uma viragem, deixou de haver o funcionário amigo e passou a haver o funcionário repressivo que aplicava coimas, que geravam muitas receitas”, relata Luís Alves, antecipando a saída de muitos destes profissionais.

“Começou a haver muita fricção dentro dos serviços porque um funcionário que está 30 anos a fazer um trabalho de uma forma e de repente se altera a sua maneira de atuar, é uma revolta e isso levou a que muitas pessoas que estavam em condições de se irem embora, saíram. Em 1994 já só havia cerca de 400 guarda-rios para o país inteiro”, recorda.

Apesar de serem só 400 guarda-rios em todo o território nacional, refere Luís Alves, “a verdade é que conseguíamos manter isto a andar, era uma carga grande mas conseguíamos manter as coisas em condições, os rios estavam limpos, o rio era um canal de escoamento de águas e era esta a sua função principal e tínhamos de promover as limpezas, os arranjos das margens, tinha de se promover tudo como um canal de escoamento de água e fazer com que nos rios portugueses não houvesse poluição”.

“A partir de um certo momento”, recorda, “deixou de se entender o rio assim, começou a dizer-se que o rio deveria de ser um contínuo natural, que não se deveria de intervir numa série de coisas, como por exemplo no corte de árvores, e isso levou a que, com essa falta de fiscalização, de cuidados, de pessoas com ideias diferentes, começasse a haver desencontros e hoje chegamos a um ponto em que os nossos rios estão em estados miseráveis, a água corre para onde ela quer, com graves prejuízos para os agricultores e para os proprietários”.

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Para Luís Alves, a poluição no rio Tejo deve de ser alvo de uma grande fiscalização e coordenação entre as diferentes entidades competentes

Luís Alves, que foi guarda-rios e encerra em si uma sabedoria imensa sobre os cursos de água, para além de presidente de uma União de Freguesias em zona ribeirinha, tem uma visão muito própria sobre o estado de degradação em que esteve mergulhado o rio Tejo.

“O problema está todo a montante e não haver fiscalização a montante é como ter uma flor rara protegida por uma redoma à volta da flor, mas a raiz fica abandonada e isso está a acontecer com todos os rios em Portugal, e com um custo para a população toda”.

“Quando a população da minha freguesia não pode usufruir do Tejo depois das obras que ali foram feitas porque a água vem toda poluída de montante, alguém teve parte nisto e não são as pessoas que aqui estão”, refere, com alguma revolta.

E defende que “há aqui uma evidente falta de fiscalização, e mais do que isso, há uma falta de planeamento e de coordenação na fiscalização porque, atualmente, para fazer o trabalho que 400 guarda-rios e 20/30 engenheiros faziam em todo o território nacional foram criados cinco serviços: o SEPNA – GNR, a PSP, a CCDR, a ARH e o ICN”.

“Multiplicaram um serviço que tinha 400 funcionários por cinco entidades com milhares de funcionários e a verdade é que isto não está a funcionar”, constata o antigo guarda-rios.

Para quem andou durante 30 anos atrás dos rios e dos cursos de água, “é triste ver o estado em que as coisas estão, quando falo com meus colegas, comentamos entre nós que, no nosso tempo, sofremos tanto e agora as coisas estão como estão, houve uma regressão completa”, lamenta Luís Alves, recordando que muitas vezes andavam à chuva, ao frio, e “passávamos noites junto ao rio para se apanharem os indivíduos das redes do meixão, era um trabalho duro mas que valia a pena fazer porque quando passámos o nosso testemunho, as coisas estavam controladas”.

Sobre quais as soluções que aponta para resolver os problemas dos rios, Luís Alves é direto e defende que “o que tem de ser feito é as pessoas abrirem os olhos, juntarem-se e lutarem por aquilo que querem, despertarem para o que é deles, que é nosso, porque os rios são nossos, não são das pessoas que gerem, esses têm de nos prestar contas”.

Entrou no mundo do jornalismo há cerca de 13 anos pelo gosto de informar o público sobre o que acontece e dar a conhecer histórias e projetos interessantes. Acredita numa sociedade informada e com valores. Tem 35 anos, já plantou uma árvore e tem três filhos. Só lhe falta escrever um livro.

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