Belmonte-Queixoperra: não sei quantos quilómetros serão, mas hão-de ser muitos, umas boas dezenas, demasiados, sobretudo para tão pouco governo. Má sorte a do casal, mais o filho, naquela tarde domingueira de janeiro em que voltaram a montar a banca no Largo do Café da minha aldeia.
Chegaram antes do meio-dia, como é costume, e depressa tiraram da carrinha o pouco que têm para vender: gangas muitas e botas de couro. Os fregueses são poucos, mas ainda assim leais, e talvez justifiquem a viagem do trio, Beira abaixo, fiado na promessa de uma primavera antecipada.
Na vila, a dois passos dali o dia começou cedo, ainda antes dos primeiros raios de sol, prenúncio de dia bom, sobretudo para os feirantes que se instalaram junto à Torre do Relógio. Os campos já pedem lavoura, há que semear – favas, ervilhas, couves, nabos, nabiças, cebolas, pimento, feijão – e em breve terão início as primeiras plantações. Os vendedores esfregam as mãos, para as aquecer também.
Mais abaixo há enxadas e enxadões, ancinhos, forquilhas, foices e gadanhas, e demais utensílios para amansar a terra, não há é quem queira trabalhá-la. Alguém grita o nome do almanaque mais famoso do país, ouvem-se falas sobre podas e geadas.
No Largo do Café também se fala na vinha, e em mudar o vinho, no tempo frio, no próximo minguante e na vacina do gado; um grupo de homens conversa enquanto a família de Belmonte vai despejando mercadoria sobre as tábuas. Alternadamente, todos vão batendo os pés com força no chão, bafejam e esfregam as mãos – só para as aquecer.
Pai, mãe e filho preparam-se para almoçar no alpendre do café, na mesa mais escondida de todas, depois de terem pedido permissão para isso. É assim desde a primeira vez, há muitos anos, ainda o largo não tinha ganho nome.
O grupo de homens formula votos de bom proveito, que os três agradecem. Mal falam entre si, cabeças baixas, olhar no caldo que têm à sua frente. Querem ser discretos, mas aqui todos os conhecem, cumprimentam, puxam conversa.
A mulher é a mais faladora dos três, o filho herdou do pai o olhar melancólico e uma certa timidez. Nenhum deles tem jeito para o negócio. Em cima da banca não há cartazes nem se lhe ouvem pregões, o que têm para vender é sempre o mesmo e está à vista, tal como o preço (marcado à mão, mas pode sempre fazer-se uma atenção).
De Belmonte a Queixoperra longo é o caminho; atravessam-se serras e vales, concelhos e distritos, demasiada estrada para acertar logo na pior data. É janeiro, terceiro domingo de janeiro, dia de Feira anual na vila de Mação. A meio da tarde já a banca está desmontada e a carrinha preparada para o regresso. Os três entram no café para agradecer a hospitalidade e prevenir que ainda antes do verão estarão de volta.
Um par de botas, couro rijo e resistente, capaz de resistir às maiores invernias e provações, trabalho duro e ingrato, foi tudo quanto venderam naquele domingo. Todavia, não se lhes vislumbrou tristeza nem revolta, daqui a uns meses estarão de volta. Enquanto houver estrada para andar a gente vai continuar, diz o rapaz. E fico a imaginar a viagem de regresso, os três em silêncio, a ouvir Jorge de Palma.