“Num ambiente em mudança, claro ou opaco, os sistemas que antecipam o futuro têm maior probabilidade de subsistir”
– Kevin Kelly
A visão do futuro, seja ela baseada em informada prospectiva analítica ou em intuitiva premonição parapsicológica, sempre foi uma aspiração dos indivíduos e das sociedades. Com ela, almeja-se reduzir a incerteza do amanhã, preparando as condições possíveis para prevenir ou enfrentar as ameaças e aproveitar as oportunidades. Os seres humanos têm horror ao vazio e, à semelhança dos irredutíveis gauleses, têm medo que o céu lhes caia sobre a cabeça, por Toutatis!
Em Relatório Minoritário, uma das suas obras mais emblemáticas (baseada no livro homónimo de Philip K. Dick), Steven Spielberg conta a história da unidade policial de elite PreCrime que, através da extraordinária capacidade premonitória dos seus três PreCogs, consegue prever e neutralizar qualquer crime antes de acontecer, punindo os putativos criminosos. Ou seja, os indivíduos são punidos não pelo que fizeram, mas pelo que poderiam fazer, privilegiando-se a segurança à justiça.
Como é óbvio, não havendo crime – nem na forma tentada, nem na intenção ou consciência do suposto previsível autor – torna-se difícil justificar o julgamento ou condenação de alguém, abrindo-se a possibilidade de, por um lado, duvidar ou pôr em causa qualquer previsão correcta (“será que iria mesmo acontecer?”) e, por outro lado, permitir que qualquer previsão errada, não confirmada pelos factos futuros, se auto-justificasse com a neutralização (intencional ou acidental) dos mesmos (“não aconteceu, mas poderia acontecer”).
Vem tudo isto a propósito do que se passou antes do dia 12 de Março de 2020, dia em que o Primeiro-Ministro de Portugal anunciou o encerramento das escolas e outras medidas de recolhimento e distanciamento social, ou mesmo antes do dia 26 de Fevereiro, data a partir da qual a DGS – Direcção Geral de Saúde começou a publicar Boletins Informativos ou Relatórios de Situação diários. Nesse período, e até ser decretado o Estado de Emergência em 18 de Março, muitas vozes da sociedade civil se levantaram e procuraram fazer-se ouvir nos meios de comunicação de massas e sociais.
Reclamavam essas vozes – umas especialistas, outras do senso comum –, que as escolas e outros espaços públicos fossem encerrados e as visitas aos lares de idosos limitadas. Outras vozes, com o mesmo perfil, sugeriam projecções quantitativas e qualitativas baseadas em sofisticados modelos ou em simples cálculos, tendo o cuidado de definir e esclarecer os respectivos pressupostos ou pontos de partida. Felizmente, estas vozes fizeram-se ouvir, designadamente junto do Primeiro-Ministro e do Presidente da República, apesar das recomendações imprudentes de algumas entidades, inclusive do sector da Saúde.
As fortes medidas de recolhimento domiciliário e distanciamento social, bem como de higiene de mãos e etiqueta respiratória (a que faltou a imposição do uso de máscaras), produziram os efeitos desejados e todas as previsões iniciais de colapso hospitalar falharam, incluindo as divulgadas pelo governo. Apesar dos casos revelados diariamente pelas autoridades de Saúde não serem fidedignos (elas próprias o reconhecem), aceita-se que o número de doentes internados, inclusive em unidades de cuidados intensivos (UCI), não deverá ser muito diferente do divulgado e está bastante aquém do previsto.
Ora, não se tendo confirmado as previsões iniciais, anteriores à tomada de medidas influenciadas por essas mesmas previsões, logo surgiram outras vozes que, se não por maldade certamente por ignorância, procuraram ridicularizar quem se “atreveu” a fazer tão “erradas” previsões. Esta lamentável atitude incorreu em quatro erros grosseiros. O primeiro, foi não perceber que as previsões estavam certas e só não se verificaram (felizmente e bem) por terem sido contrariadas a posteriori, um fenómeno que, como é lógico, também se verificou em muitos outros países, incluindo os EUA. Aquilo que ia ser mau, afinal não foi (tanto).
O segundo erro crasso, foi concordar com o disparate dos “prognósticos só no fim do jogo” e não compreender a importância da prospectiva, i.e. das previsões e suas circunstâncias, para a tomada de decisão estratégica (e não para apostar num qualquer jogo de casino). Foram as estimativas previsionais que permitiram tomar consciência da tragédia que se anunciava e agir preventiva e atempadamente, evitando-a. O terceiro erro, foi escolher atacar o mensageiro e não a mensagem, ou seja, nunca contrapuseram outras estimativas e, sorrateiramente, esperaram o melhor momento para se atirarem a quem “ousou”, com maior ou menor competência, fazer o que devia ou podia: prever o futuro.
Finalmente, o quarto erro foi parecer ter ficado mais feliz (schadenfreude) com a humilhação dos seus concidadãos do que com a infirmação do desastre antecipado e não ter percebido que o maior desejo daqueles não era acertar nas previsões, mas sim que estas não fossem tão más quanto se estimava. Claro que a demonstração da fiabilidade das projecções, tendo o mal sido evitado, não pode ser feita com base em prova prática e objectiva, mas apenas em conhecimento teórico e honestidade intelectual, como quem calcula distâncias no Universo. Mas, será assim tão difícil perceber que as previsões de eventos negativos são desejavelmente feitas para falharem?
Uma grande diferença entre o homem inculto e o de cultura (em sentido lato), é que este tem maior (auto)conhecimento e não se deixa tão facilmente enganar pelos enviesamentos cognitivos determinados pelos estímulos falaciosos do contexto e as imperfeições do sistema perceptivo. A psicóloga educacional Kendra Cherry afirma que “embora todos gostemos de acreditar que somos racionais e lógicos, o triste facto é que estamos constantemente sob a influência de preconceitos cognitivos que distorcem o nosso pensamento, formam as nossas crenças e determinam as decisões e julgamentos que tomamos todos os dias”.
Um desses enviesamentos é o da “retrospectiva” (hindsight): tende-se a considerar as ocorrências futuras mais previsíveis do que elas são efectivamente (“claro, eu já sabia!”), considerando-as óbvias ou inevitáveis e desvalorizando erros de previsão anteriores. Enviesa-se, igualmente, na valência dos eventos que se prevê, sobrestimando os positivos e subestimando os negativos, e cai-se frequentemente no erro de valorizar excessivamente determinados aspectos do evento, designadamente os mais salientes e emocionalmente carregados.
Philip Tetlock, psicólogo e cientista político, chama também a atenção para o “paradoxo do especialista”, designação pela qual é conhecida a vantagem frequentemente demonstrada por indivíduos com conhecimento generalista, em matérias dominadas por especialistas. Sem menosprezar o conhecimento, o contributo e a óbvia vantagem da “visão de túnel” dos especialistas em determinadas circunstâncias, Tetlock realça que “os novatos, os leigos e os generalistas tendem a revelar maior curiosidade e criatividade, e a melhor aceitar a ambiguidade, a crítica e o fracasso, aprender com os erros, buscar novas soluções, integrar ideias contraditórias e resolver problemas”.
“Prever é muito difícil, principalmente se for sobre o futuro”, terá dito em 1922 o Prémio Nobel de Física Nils Bohr. Por isso, sem surpresa a consultora internacional KPMG reconhece que apenas uma em cada cinco organizações fica a ± 5% de acertar nas suas previsões (e não se pense que ultrapassá-las é necessariamente bom, mesmo quando se referem a objectivos de vendas ou lucros). É certo que o “desenrascanço” é uma realidade confirmada com muito orgulho por 86% dos gestores portugueses (embora só 31% dos seus colegas estrangeiros concorde), sendo apenas 9% os que concordam que se gere de forma planeada (os estrangeiros pensam o mesmo). Mas, ninguém no seu perfeito juízo pode negar a vantagem de se gerir com boa prospectiva e planeamento por cenários.
Paul Saffo, professor de prospectiva tecnológica em Stanford, chama a atenção para a diferença entre previsões ou projecções e vaticínios, profecias ou predições, afirmando que “o objectivo das primeiras é identificar o leque completo de possibilidades e não um conjunto limitado de certezas ilusórias”. E acrescenta que “se uma determinada previsão se verifica, isso é apenas parte do exercício – até um relógio avariado está certo duas vezes por dia –, a tarefa do previsor é sobretudo mapear a incerteza, pois num mundo onde as atitudes presentes influenciam o futuro, a incerteza constitui uma oportunidade”. O mesmo se pode e deve dizer da não verificação das ameaças.
Para este especialista, as projecções obedecem a um processo metodológico e têm uma lógica subjacente, sendo estes avaliados quando se pretende determinar, de forma independente, objectiva e crítica, a qualidade ou fiabilidade das mesmas, assim como as ameaças ou oportunidades que antecipam. Nesta perspectiva, a crítica à razoabilidade das previsões faz sentido. Mas as vozes que, por maldade ou ignorância, procuraram ridicularizar quem se “atreveu” a ser cidadão de corpo inteiro e a opinar prospectivamente, com plena liberdade e responsabilidade, apenas pretenderam “matar o mensageiro” e jamais questionar a justeza ou precisão da mensagem.
*O autor não segue as regras do novo acordo ortográfico.