Espalmadas quanto uma folha de papel acabada de retirar da resma. Chatas não por serem aborrecidas ou enfadonhas (antes pelo contrário), rasas sim, arredondadas, que tanto podem ser açucaradas e cobertas com guloseimas, como desprovidas de açúcares levando a massa, apenas a massa, apenas manteiga, de forma a ficarem macias quanto a pele acetinada de donzela medieval protegida dos raios solares, ventos, trovões e chuviscos de vária ordem.
Gosto de línguas de gato (a delícia originou alusões maliciosas inseridas em obras literárias e artísticas) porque podem ser sustentáculo de conversas pífias sem ponta de afagos lambidos em pensamento, ou interesse. No entanto, a leve untuosidade das línguas de gato tornam o obrigatório palrar (noblesse oblige) num divertido solilóquio onde quem desveladamente as confeccionou e as ofereceu acompanhadas por licor de laranja.
Esfusiantes, as línguas retiradas de uma lata dourada (onde se conservam muito) tornaram a rememoração menos enfadonha e, na despedida, ficou o desejo de saborear as restantes.
Escuso-me de referir outras virtudes das finas e delicadas línguas, no entanto, atrevo-me a sugerir a quem lê esta crónica colocar num pires as tentadoras e noutro a fazer-lhe companhia natas ou iogurte. Depois, qual gato lambareiro, molhar ligeiramente cada língua no segundo pires e preguiçosamente mastigar, mastigar até roçar a ponta dos dedos. O resultado final é desfrutar a iguaria até à saciedade.
Há quem aprecie as línguas em combinação com salada de frutas, a fruição será tão donairosa como a antecedente. Poderá subir em exaltação sensorial se, em todas as experimentações, substituir o licor por champanhe ou um bom espumante.
Não vou citar (ao contrário do que costumo fazer) livros nos quais os autores e autoras domesticam as palavras de modo a estas explanarem demorada e languidamente referirem as bênçãos recebidas na sequência das experimentações, sim, porque o prazer é físico e sensorial. Não estou a exagerar, estou apenas a suspirar porque a pandemia obriga-me a atacar o tédio da reclusão a lembrar-me de aventurosas reuniões de trabalho nas quais as delicadas línguas de gato me faziam exclamar: a vida é bela, nós é que damos cabo dela!
Agora, escrevo acerca de saudades do passado sem máscaras agrilhoadoras, sem luvas pegajosas, sem temor e tremor ante vírus de origem desconhecida. Com línguas…
Apetece relembrar E não se pode exterminar! Do corrosivo Karl Valentim. Exterminar o vírus, entenda-se bem.
Armando Fernandes é um gastrónomo dedicado, estudioso das raízes culturais do que chega à nossa mesa. Já publicou vários livros sobre o tema e o seu "À Mesa em Mação", editado em 2014, ganhou o Prémio Internacional de Literatura Gastronómica ("Prix de la Littérature Gastronomique"), atribuído em Paris.
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